domingo, 27 de setembro de 2009

Desmemórias- capítulo 09

Entraram em uma livraria, não sabendo quem deu a idéia primeiro. Lá eles novamente compararam gostos, nem tão diferentes assim, mas que provocava piadas. Dicionários, CDs e DVDs a parte, riram bastante, ainda sem perder a ironia mútua. Estranharam a movimentação da loja diminuir, e perceberam que estava fechando. “22 horas!”, ouviram de um funcionário da loja, e exclamaram ambos com um leve suspiro “Nossa, mas já?..”. “Fazer o que, voltar outro dia”, disse ele sem notar o ‘planejamento’ do próximo encontro, o que ela também não notou...

Andando mais alguns metros ambos decidiram que era uma boa hora para parar e sentar um pouco. E decidiram juntos, sem comentários irônicos. Em frente a um desses bares com cadeiras na calçada sentaram. Assim que veio o garçom, ele pediu uma cerveja, julgando que ela o acompanharia. Ela pediu um açaí.

Tomou a cerveja sozinho, sob os olhares e comentários de desaprovação dela, que dizia que a essa altura não voltaria com ele nem para implorar uma carona, por causa do álcool... Ele então pediu algo calórico pra comer, e ouviu novamente comentários sobre aquilo. “Ta servida?”, perguntou-a quase colocando o lanche em sua boca...

Conversaram mesmo assim, menos irônicos, ele comentando sobre os tempos de faculdades e noites intermináveis de festas, e ela sobre conciliar estágio, faculdade e festas. Em nenhum momento, estranhamente, comentavam sobre relacionamentos.

Quando ambos estavam satisfeitos, a preguiça parecia bater. Talvez o momento mais arriscado da noite também, o comodismo da situação, uma ponta de sono mais por causa do cansaço acumulado da semana, e a vontade de dormir pela manhã inteira no domingo. Ambos pensavam e disfarçavam imaginando que o outro não perceberia. Até reunirem coragem para seguir a caminhada.

O relógio marcava cerca de quinze minutos pras 23 horas. Mas ambos não saberiam, evitavam olhá-lo, talvez por ansiedade, talvez por temê-lo.

Havia no quarteirão seguinte um belo, ainda que pequeno parque. Aberto até quase meia noite aos finais de semana. “Nem louca eu vou entrar aí! Quer ser assaltado vai sozinho!”, disse ela. “Dureza, pára de se preocupar tanto garota, não estamos aqui? O que tiver que ser, será. Qualquer coisa é só gritar bem forte ok? Acho que você deve conseguir com essa voz...” Assim, convenceu-a, muito relutante e um pouco frustrada por não ditar agora as cartas do jogo.

“Um ninho de mata-atlântica incrustado no meio da mais movimentada avenida da cidade”, definiu o parque à garota, que provavelmente já o conhecia, ao menos de passagem. “É, eu sei. Mas sabia que eu nunca tinha entrado aqui?”, respondeu ela esclarecendo a dúvida. E andaram pelas ruelas calçadas de pedras antigas, como o antigo pavimento das calçadas da avenida. Passaram por árvores, ouviram corujas cantando. Até mesmo o clima ali dentro mudava, e ela sentiu um pequeno desconforto por causa da brisa fria. “É por causa das copas das árvores, que são enormes. Aqui dentro a temperatura abaixa mesmo”, explicou ele, acrescentando para não deixar a cutucada de lado “Quem mandou vir vestida assim né?!”. “Hahah engraçadinho. Vamos andando que assim esquenta...”

Pararam sobre a pequena ponte que ligava as duas extremidades do parque, com uma rua passando por baixo. Encostaram ali e ficaram apenas observando os carros. O tempo, a essa altura, era algo que não existia. Ao menos na cabeça de ambos ele parecia parar.

“É muito estranho esse bando de gente, esse bando de carro, não é?”, “disse ela, sem dirigir-lhe o olhar, direcionando o mesmo para a multidão de faróis, buzinas, freadas e aceleradas.”

Ela havia tocado num ponto em que ele tinha uma opinião mais do que formada, e irredutível, que sempre provocava discussões com quem se atrevesse a lhe falar o contrário.

- Bom, você sabe, eu sou fotógrafo. Apesar de às vezes parecer ridículo trabalhar em festa de casamento ou alguma comemoração de gente rica e metida, eu sempre vou preferir tirar fotos de pessoas do que de paisagens.

- Por quê? –perguntou ela em tom sereno-

- Simples. Porque têm vida. Não há nada como uma boa expressão. Triste ou alegre é um sinal de vida. Claro que eu tiro as minhas fotos de paisagens, e gosto delas, mas é o que eu penso, e disso não vou abrir mão.

- É, até que faz sentido...

Saíram dali, caminharam para a parte sul do parque. Estavam se dando bem, se é que em algum momento da noite as ironias mútuas significavam o contrário.

Mais uns minutos andando e tentando ler as espécies de árvores e plantas com a luz que não era claramente necessária para aquilo, ouviram os apitos do pessoal da segurança do parque, junto com os avisos de que fechariam em dez minutos. Demoraram mais cinco até sair, e demorariam dez se não fossem os constantes apitos que lhes perturbavam, tamanha era a tranqüilidade que sentiam ali dentro.

Pouco antes de saírem, sem parar de andar, ele apontou para um dos bancos dizendo:

- Esse banco aí... Na época da faculdade eu saía do estágio, que era aqui perto, e vinha aqui pro parque estudar. Muitas vezes acabava dormindo aí.

- E nunca te aconteceu nada?! -perguntou ela espantada-

- Que nada. A gente tem o costume de achar que tudo é perigoso. O terror da nossa vida é a gente mesmo quem faz. Por isso ficar dentro de casa é perigoso, a gente se sente seguro e que nada mais se compara àquilo...

- Não quero parecer intrometida... Mas parece que você fala por experiência própria... –disse ela totalmente polida e até temendo uma reação mais intempestiva dele-

- Olha... –pausando a fala- Não vou negar que passei algumas poucas e boas. Mas... Quem não passou né?

Ela percebeu uma leve hesitação dele em falar sobre o assunto, e não quis insistir. O parque fechava os portões às costas deles. 23h45min. Consultaram o relógio, dando a impressão de que faziam isso apenas para saber que era este o horário de fechamento dele, um bom programa noturno pra quem quer apenas espairecer e observar.

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