domingo, 27 de setembro de 2009

Desmemórias- capítulo 10

Mais um quarteirão a frente, restavam apenas dois ou três. Passaram em frente ao shopping/cinema, e comentando os cartazes dos filmes novamente discordavam um do outro.

Ao atravessarem a avenida conhecida por ‘casas de entretenimento adulto’ [e nem sempre apenas servidas de mulheres], as piadas foram inevitáveis: ela disse-lhe que ele estaria morrendo de vontade de entrar em alguma ‘casa’ daquelas. Ele respondeu com um cinismo, perguntando se não era por ali que ela trabalhava... Ganhou mais um beliscão, dessa vez no outro braço.

Perto do último quarteirão, faltando cinco minutos pra meia-noite, passaram em frente a uma entrada do metrô. Ele olhou, e disse a ela em um tom um tanto pessimista que quando passassem pela mesma entrada no outro lado, já passaria da meia-noite, portanto talvez não desse tempo dela pegá-lo. “Preocupado com isso?”, perguntou ela, sem ouvir resposta. Ele apontava para um café, do outro lado da avenida, como o ‘ponto final’ para a decisão de ambos. Ela concordou.

O nervosismo e a pressa inexplicável fez ambos queimarem a língua. Meia-noite, um, dois, três, quatro, cinco minutos. Se olharam, e sem se falarem andaram mais poucos metrôs. “Pára”, disse ela.

- Então... É o fim da noite, certo? –perguntou a garota-

- Bom... O fim é. Mas qual fim?

Ela pediu a ele que fechasse os olhos, ele o fez prevendo um beijo.

Ouviu a voz dela um pouco a frente dizendo alto “Pode abrir!” E percebeu que ela caminhava em direção ao metrô, prestes a fechar.

Conformado, porém com uma ponta de decepção ele deu poucos passos até a direção dela, que caminhava de costas, olhando a reação dele. Falou alto, contrariando seu próprio gosto, perguntando “Então é assim?!”. Ao longe, a garota exclamou “Ah, esqueci uma coisa!..”


Caminhou novamente na direção dele, deu-lhe um rápido beijo na bochecha, esfregou a pequena mancha de batom e disse “Você ta me devendo um encontro amanhã à tarde, esqueceu?!”. E virou as costas de uma vez, correndo para a escadaria do metrô.

Desmemórias- capítulo 09

Entraram em uma livraria, não sabendo quem deu a idéia primeiro. Lá eles novamente compararam gostos, nem tão diferentes assim, mas que provocava piadas. Dicionários, CDs e DVDs a parte, riram bastante, ainda sem perder a ironia mútua. Estranharam a movimentação da loja diminuir, e perceberam que estava fechando. “22 horas!”, ouviram de um funcionário da loja, e exclamaram ambos com um leve suspiro “Nossa, mas já?..”. “Fazer o que, voltar outro dia”, disse ele sem notar o ‘planejamento’ do próximo encontro, o que ela também não notou...

Andando mais alguns metros ambos decidiram que era uma boa hora para parar e sentar um pouco. E decidiram juntos, sem comentários irônicos. Em frente a um desses bares com cadeiras na calçada sentaram. Assim que veio o garçom, ele pediu uma cerveja, julgando que ela o acompanharia. Ela pediu um açaí.

Tomou a cerveja sozinho, sob os olhares e comentários de desaprovação dela, que dizia que a essa altura não voltaria com ele nem para implorar uma carona, por causa do álcool... Ele então pediu algo calórico pra comer, e ouviu novamente comentários sobre aquilo. “Ta servida?”, perguntou-a quase colocando o lanche em sua boca...

Conversaram mesmo assim, menos irônicos, ele comentando sobre os tempos de faculdades e noites intermináveis de festas, e ela sobre conciliar estágio, faculdade e festas. Em nenhum momento, estranhamente, comentavam sobre relacionamentos.

Quando ambos estavam satisfeitos, a preguiça parecia bater. Talvez o momento mais arriscado da noite também, o comodismo da situação, uma ponta de sono mais por causa do cansaço acumulado da semana, e a vontade de dormir pela manhã inteira no domingo. Ambos pensavam e disfarçavam imaginando que o outro não perceberia. Até reunirem coragem para seguir a caminhada.

O relógio marcava cerca de quinze minutos pras 23 horas. Mas ambos não saberiam, evitavam olhá-lo, talvez por ansiedade, talvez por temê-lo.

Havia no quarteirão seguinte um belo, ainda que pequeno parque. Aberto até quase meia noite aos finais de semana. “Nem louca eu vou entrar aí! Quer ser assaltado vai sozinho!”, disse ela. “Dureza, pára de se preocupar tanto garota, não estamos aqui? O que tiver que ser, será. Qualquer coisa é só gritar bem forte ok? Acho que você deve conseguir com essa voz...” Assim, convenceu-a, muito relutante e um pouco frustrada por não ditar agora as cartas do jogo.

“Um ninho de mata-atlântica incrustado no meio da mais movimentada avenida da cidade”, definiu o parque à garota, que provavelmente já o conhecia, ao menos de passagem. “É, eu sei. Mas sabia que eu nunca tinha entrado aqui?”, respondeu ela esclarecendo a dúvida. E andaram pelas ruelas calçadas de pedras antigas, como o antigo pavimento das calçadas da avenida. Passaram por árvores, ouviram corujas cantando. Até mesmo o clima ali dentro mudava, e ela sentiu um pequeno desconforto por causa da brisa fria. “É por causa das copas das árvores, que são enormes. Aqui dentro a temperatura abaixa mesmo”, explicou ele, acrescentando para não deixar a cutucada de lado “Quem mandou vir vestida assim né?!”. “Hahah engraçadinho. Vamos andando que assim esquenta...”

Pararam sobre a pequena ponte que ligava as duas extremidades do parque, com uma rua passando por baixo. Encostaram ali e ficaram apenas observando os carros. O tempo, a essa altura, era algo que não existia. Ao menos na cabeça de ambos ele parecia parar.

“É muito estranho esse bando de gente, esse bando de carro, não é?”, “disse ela, sem dirigir-lhe o olhar, direcionando o mesmo para a multidão de faróis, buzinas, freadas e aceleradas.”

Ela havia tocado num ponto em que ele tinha uma opinião mais do que formada, e irredutível, que sempre provocava discussões com quem se atrevesse a lhe falar o contrário.

- Bom, você sabe, eu sou fotógrafo. Apesar de às vezes parecer ridículo trabalhar em festa de casamento ou alguma comemoração de gente rica e metida, eu sempre vou preferir tirar fotos de pessoas do que de paisagens.

- Por quê? –perguntou ela em tom sereno-

- Simples. Porque têm vida. Não há nada como uma boa expressão. Triste ou alegre é um sinal de vida. Claro que eu tiro as minhas fotos de paisagens, e gosto delas, mas é o que eu penso, e disso não vou abrir mão.

- É, até que faz sentido...

Saíram dali, caminharam para a parte sul do parque. Estavam se dando bem, se é que em algum momento da noite as ironias mútuas significavam o contrário.

Mais uns minutos andando e tentando ler as espécies de árvores e plantas com a luz que não era claramente necessária para aquilo, ouviram os apitos do pessoal da segurança do parque, junto com os avisos de que fechariam em dez minutos. Demoraram mais cinco até sair, e demorariam dez se não fossem os constantes apitos que lhes perturbavam, tamanha era a tranqüilidade que sentiam ali dentro.

Pouco antes de saírem, sem parar de andar, ele apontou para um dos bancos dizendo:

- Esse banco aí... Na época da faculdade eu saía do estágio, que era aqui perto, e vinha aqui pro parque estudar. Muitas vezes acabava dormindo aí.

- E nunca te aconteceu nada?! -perguntou ela espantada-

- Que nada. A gente tem o costume de achar que tudo é perigoso. O terror da nossa vida é a gente mesmo quem faz. Por isso ficar dentro de casa é perigoso, a gente se sente seguro e que nada mais se compara àquilo...

- Não quero parecer intrometida... Mas parece que você fala por experiência própria... –disse ela totalmente polida e até temendo uma reação mais intempestiva dele-

- Olha... –pausando a fala- Não vou negar que passei algumas poucas e boas. Mas... Quem não passou né?

Ela percebeu uma leve hesitação dele em falar sobre o assunto, e não quis insistir. O parque fechava os portões às costas deles. 23h45min. Consultaram o relógio, dando a impressão de que faziam isso apenas para saber que era este o horário de fechamento dele, um bom programa noturno pra quem quer apenas espairecer e observar.

Desmemórias- capítulo 08

- E agora, pra onde? –perguntou ele-

- É o seguinte, agora posso te explicar, e se você não aceitar os termos podemos nos despedir agora mesmo... –respondeu a garota demonstrando uma autoconfiança que beirava a arrogância-

- Eu estou de acordo, acho tudo isso muito estranho, mas vamos lá...

- Então. Nós vamos dar algumas voltas na avenida. Quantas voltas e o que a gente vai fazer por aqui só depende da vontade de nós dois. Se até meia-noite nossos gostos não combinarem ou na pior das hipóteses, um de nós não quiser mais ver a cara do outro, viramos as costas e eu pego um metrô pra ir embora. Combinados?

- Meia-noite? Tudo isso?.. –disse ele claramente provocando-a –

- Isso mesmo, topas ou não?

- Garota, você está prestes a passar às quatro horas mais longas da tua vida...

Claramente os dois gostavam de se provocar, desde o princípio, quando foi marcado o encontro duplo ao telefone. Havia uma tensão no ar que só aumentava com as constantes piadas em relação um ao outro, e até aquele momento ambos pareciam não ter uma opinião definida sobre o outro.

Começaram o passeio partindo do meio da avenida até o início. Passaram em frente a alguns barzinhos, botecos com cadeiras na rua, pessoas bebendo e fumando do lado de fora. Ele comentou algo irônico a respeito da lei, dando graças a Deus pela mesma, no que ela retrucou-lhe irritada, dizendo que era absurdo, inconstitucional e outras coisas do tipo. “Você fuma?”, perguntou ele, já prevendo pontuação recorde negativa para ela em caso de afirmação. “Não, mas constitucionalmente eu tenho o direito de fumar aonde eu quiser, se eu quiser!”. Ele riu como se não acreditasse no que havia ouvido. “Você é uma figurinha mesmo garota!”, evitando sempre dizer o nome dela.

Passaram por uma banca ainda aberta, ela entrou sem se importar se ele viria atrás. Comprou uma revista de ciência e outra de palavras-cruzadas. “Pra que isso?”, perguntou ele. “Se ficar muito chato falar com você eu tenho algo pra fazer!”. Ele não ficava mais irritado com as tiradas dela, apenas ria ironicamente de volta. Quem os visse naquele momento não saberia dizer se eram namorados ou ex-namorados acorrentados andando juntos à força...

Passaram em frente a um espaço cultural, já perto do começo da avenida, no Paraíso. Ela disse que deviam ir ali qualquer dia “isto é, se a gente voltar a se ver” pelas suas próprias palavras.

- Pronto, estamos no começo. E agora voltamos pelo outro sentido?

- Isso mesmo garoto, está aprendendo...

Atravessaram a rua. Passaram ambos alguns cinco minutos calados, talvez em pensamentos próprios.

- Sabe de uma coisa interessante? –perguntou ele como se esquecesse quem estava com ele-

- Diga, mudinho. –respondeu lhe fazendo lembrar-se disso...

- Ah, esquece! Tudo pra você é piada não é mesmo? –demonstrando novamente estar contrariado-

- Ahh quanto drama. Estou interessada, diga, sim? –tocando de leve o braço dele, no primeiro sinal gentil daquela noite-

Fazendo uma pequena pausa ele retomou:

- Eu tenho dificuldade de andar aqui.

- Por quê?

- Porque é uma avenida larga, enorme. Eu vivo de tirar fotos né, então eu olho pra todos os cantos. Mas aqui eu tenho que olhar pro lado, pra cima, pro outro lado, tudo ao mesmo tempo. As imagens se misturam, bagunça tudo...

- Os pensamentos também? –respondeu ela-

- Como assim?

- Oras, é como sua câmera. As imagens vêm, passam por uma lente e sai o resultado final, a foto.

- Humm.

- Isso mostra que você não é uma máquina que capta algo e emite um relatório pronto, perfeito na hora. Tem que pensar a respeito do que vê, às vezes pode ver milhões de vezes e ainda assim não conseguir dizer por que gosta ou não gosta daquilo.

- Impressão minha ou você filosofou agora? –desta vez ele que deu a tirada sobre o que ela disse-

- Hahah, sim, talvez. De Filósofo e louco a essa hora todo mundo tem um pouco né? Aliás, que horas são?

- 21h15min.

- Estamos aqui há uns 40 minutos, é isso?

- Basicamente. A não ser que os últimos 38 de patadas e ironias não contem... –disse, fazendo-a rir como até então não havia feito.

Passaram alguns minutos apenas comentando os tipos estranhos que viam, e seus modos de se vestirem. Sábado à noite na maior e mais fervilhante avenida da cidade, e estavam num encontro que não se podia definir o que era, e aonde daria.

Talvez sem notarem, iam engatando pequenas conversas. Ele lhe perguntava sobre o trabalho dela, e ela sobre as fotografias dele. “Já fiz um evento aqui, e ali, e ali...” dizia ele, até ela cortar o que estava falando para apontar alguma coisa e fazer um comentário ácido ou humorado. Ele começava a se acostumar. “Com você do lado eu tenho que falar frases de 140 caracteres...” disse ironicamente a ela, que percebendo o trocadilho riu bastante. “Você vê uma imagem e clica, mudo, observando. A minha forma de observar é falando!”, disse ela, reforçando a diferença. “Ok, mas não precisa apontar né...”

Passaram em frente ao ponto de partida, o estacionamento. Ela apontou para o carro dele e disse “Se quiser fugir ainda dá tempo, hein? Daqui até o fim da avenida você pode ficar em perigo!”. “Perigo...”, gracejou ele. “Com esse tamanho todo?..”. [Apesar dela não ser exatamente baixa, e sim ele alto]. Após isso ela deu-lhe um beliscão que deve ter doído...

Desmemórias- capítulo 07

Nada poderia ser pior...” Ele pensou. O motivo: a chuva torrencial que pegou ele e a amiga do amigo de surpresa.

Estavam se falando praticamente pela primeira vez, quase dois desconhecidos, aproximados por um amigo [da onça] em comum. Para tentar quebrar o gelo da situação inusitada, ele sugeriu a ela, ao telefone, que fizessem no mesmo dia dois programas: um que ele sugerisse e outro que ela assim o fizesse. Como ‘brincadeira’, ambos anotariam mentalmente pontos que gostassem e não gostassem em ambos os encontros. Caso desse certo, sairiam outra vez... Ela gostou dessa estranha sugestão, e talvez por ser mesmo diferente do usual, concordou.

Ele escolheu o dia, e ela a noite. Ele então a levou para uma escalada em um dos picos nas redondezas da cidade. Em seu próprio carro, que a contragosto resolveu comprar e estava pagando a duras penas...

Mas a surpresa foi que no meio do caminho o céu nublado que ele de forma otimista dizia que iria abrir, na verdade despencou. Teve que encostar o carro, e esperar. Não sabia o que dizer, a não ser reclamar da chuva e xingar, ainda que se contendo na frente dela. E ela ria...

Isso não o agradava, nada o agradava, mas ao pensar que não havia o que fazer, e que devia ser mais gentil com ela, se conformou... Ela sugeriu o rádio, e ficaram alguns minutos discutindo um o gosto do outro, em meio a risos. Até ela desligar o som, aparentemente só para provocá-lo. Ele não se importou, e perguntou a ela “E agora? Com essa chuva vamos ter que voltar, já era a nossa escalada!..”

Ela concordou, já que a chuva parecia diminuir, ao menos o granizo acabara. Ele perguntou se devia deixá-la em casa, ela disse que sim, mas sem o deixar esquecer que a noite fariam o que ela havia programado.

Ele pensava que a garota era dura na queda, não dava o braço a torcer em nada –assim como ele- e tinha uma personalidade marcante. E ao mesmo tempo parecia insistir em provocá-lo, o que ele não sabia ser apenas por diversão ou para ganhar sua atenção. Por causa dessa intriga esboçou um sorriso mínimo, imaginando o que viria noite adentro.

Deixou-a na portaria do prédio, ouvindo dela mais um lembrete de não se esquecer de pegá-la às 20hs, com um leve tom de ironia na palavra ‘esquecer’...

Então ele assim o fez. Pontualmente, algo que ele mesmo não gostava, se prender aos ponteiros do relógio, se prender a horários de outras pessoas... A noite era quente, mas mesmo assim ele se arrumou considerando que ela escolheria uma balada qualquer, com calça jeans e camiseta, formal como sempre. Interfonou, ela avisou que estava descendo e em poucos minutos estava em frente do carro dele, de shorts, camiseta e tênis... “Você vai assim?!” Perguntou, sem conseguir disfarçar o espanto. “Você não sabe aonde vamos!..” Respondeu ela sem deixar a ironia de lado. “Ta bom então”. Um pouco contrariado ele sequer abriu a porta pra ela, que o fez sozinha, ligou o carro e saiu. “Pra onde vamos?”, perguntou novamente. “Pra avenida.”, respondeu ela, indicando a avenida mais movimentada da cidade e fazendo-o virar o pescoço com estranheza novamente. Chegaram ao local, ela sugeriu que ele parasse em algum estacionamento 24hs, e ele o fez, quase ao meio da avenida de mais de um quilômetro de extensão.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Do Meu Jardim

É preciso sol, é preciso chuva
Dias passarem, muitos dias as vezes
Deixar pra trás os que não foram proveitosos
Esperar que o próximo traga aquilo que é necessário
Crescer, fortificar suas raízes
As vezes olhando para os que estão ao seu lado
Mais alegres, mais radiantes, apontando pro sol
E mesmo assim não desanimar, nem invejar
De fato, a natureza traz alguns mistérios
Como a flor que demora meses a abrir
A árvore que leva anos a crescer
E sua florada dura as vezes mais de uma estação
Então eu pacientemente continuo a regar
Pois, das flores do meu jardim
Esta é a que mais ansiosamente espero ver